A antecipada e bem publicitada nova produção de Elektra terminou ontem no Centro Cultural de Belém. A produção revela um esforço significativo para fazer um casting ganhador. Ouvimos todos os intérpretes principais no seu repertório adequado e os currículos dos mesmos confirmam-no. Honestamente, não posso dizer o mesmo da direcção musical nem da encenação. Regressei do auditório com uma sensação de satisfação por ter visto esta ópera ao vivo pela primeira vez numa montagem respeitável que representa, para mim, o ponto alto desta temporada em S. Carlos até agora. Se isso é bom em relação a esta Elektra, não abona nada de favorável em relação aos espectáculos passados da temporada. Confesso que fui ver esta Elektra duas vezes: não só por terem sido as primeiras vezes que ouvi esta ópera de uma ponta à outra, mas também porque fiquei francamente satisfeito com o elenco. (Quantas vezes temos o privilégio de ouvir uma grande ópera de uma ponta à outra pela primeira vez?) A última récita a que assisti confirmou suspeitas preliminares positivas sobre a obra e o elenco; mas também chamou a atenção para aspectos negativos.
A Elektra de Strauss é uma obra desconcertante, desconfortável e penetrante. Desoncertante porque é difícil compreendê-la; desconfortável porque é um drama agitado e violento. Curiosamente, é penetrante porque, apesar de ser desconcertante e desconfortável, a música gera uma envolvência que transmite grande expressividade. Por outras palavras, embora seja difícil compreender Elektra objectivamente, a música veicula uma série de emoções puras e expressivas que nos fazem aceder à parte mais íntima e primitiva das personagens. Strauss desenvolve uma rede de motivos-condutores (leit-motive) incluindo conceitos rítmicos, melodias e sons bastante primitivos que são fáceis de atingir e guiam o relacionamento do espectador com as personagens. (Exemplos óbvios incluem o ritmo do êxtase da dança e o famoso motivo obsessivo “Agamemnon”.)
Apesar de não conhecer bem a música, achei-a bastante compreensível e achei a direcção musical do maestro Leo Hussain pouco entusiasmante e monocórdica. Não senti grande energia a sair do fosso de orquestra. Li num artigo de jornal que o maestro poderá ter feito de propósito para remover as qualidades de Elektra enquanto drama barulhento e violento. Acho que esse objectivo é inconsistente com a natureza expressionista da obra e resulta numa leitura empastelada, sem ânimo e que dificulta o diálogo entre espectador e personagem tão fundamental nesta ópera. Curiosamente, descobri feedback positivo do elenco quanto ao apoio do maestro Hussain mas leio agora que as minhas suspeitas são confirmadas pela crítica dos Fanáticos da Ópera. Felizmente, o elenco principal trouxe inputs valiosos (e experientes) para colmatar a falta de emotividade tão conspícua da orquestra.
Na última récita, a Clitemnestra de Lioba Braun foi vaiada; por mim, Hussain teria sido vaiado em vez da meio-soprano. Braun foi vaiada por estar em fim de carreira e não por apresentar uma leitura incoerente da personagem. Embora anasalada e de baixo volume, a voz de Braun é penetrante e a interpretação da personagem é convencional e de grande classe. O Orestes de James Rutherford é igualmente convencional, de voz profunda e penetrante. No final, após estar em palco durante hora e meia sem motivo aparente, ouvimos finalmente o Aegisth de Marco Alves dos Santos. Novamente, o papel confiado ao excelente cantor é curto, mas apresentado com precisão, afinação e projecção. O único aspecto menos positivo que identifico são os seus dotes como actor. Ouvir a Crisostemi cristalina e simples de Allison Oakes foi um alívio no meio da complexidade das outras personagens--sobretudo posta em contraste com a voz encorpada e volumosa de Nadja Michael. A Crisostemi de Oakes nesta Elektra foi como acompanhar um bom vinho branco fresquinho numa tarde de verão intensa. A voz ampla de Michael, como Elektra, envolve o auditório e transpõe a orquestra com uma nobreza e incisão. A presença em palco é avassaladora e até me atrevo a dizer que absorve largamente as falhas da encenação. Várias vezes, transmitiu-me uma sensação de insegurança nas notas agudas que acabou por não se consubstanciar em falha. Essa sensação não tira o mérito desta extraordinária artista enquanto uma excepcional cantora-actriz, capaz de exprimir uma vasta palete de sentimentos entre a pura angústia e o mais puro e selvagem êxtase.
Depois da desilusão orquestral--já que o maestro Hussain não conseguiu materializar expressionismo--foi também uma pena não termos assistido à dança triunfal de Elektra, que é o vértice mais íntimo, absolutamente selvagem da ópera. Na verdade, tenho a comentar que fiquei desapontado com a encenação de Nicola Raab no geral. (Quem leu este meu texto sobre a nova temporada em S. Carlos sabe que eu tinha grandes expectativas bem fundamentadas para este trabalho da encenadora.) A minha pergunta é: o que é que Raab transmite com esta encenação e que seja visível da plateia? Quase nada: a leitura não é esteticamente convencional mas também não traz absolutamente nada de novo. Existe uma plataforma no centro do palco por onde Elektra se movimenta, representando o seu foro íntimo. Aparentemente, há um jogo com as partituras--mas não detecto nenhum simbolismo pertinente por trás. Adicionalmente, ao remover a dança final e a morte de Elektra, Raab está a desafiar Strauss e Hofmannsthal. Desafiar dois nomes históricos da arte seria compreensível se Raab tivesse de facto algo para contribuir--por mais pequeno que fosse. A justificação de que Raab seguiu Eurípedes também não é válida porque é conflituosa com a música, o libreto e o raciocínio da ópera. Na ausência de elementos actualizadores, ao remover a dança final e a morte de Elektra, Raab está simplesmente a mostrar que não compreendeu a mensagem da obra. O libreto deixa bastante explícita a mensagem da obra: “Viel lieber tot,/ als leben und nicht leben” (“Antes morrer, do que estar viva e não viver”). Ou seja, Elektra é o drama expressionista de quem vive sem uma boa razão para viver e Raab não percebeu isso.
★★★★☆
A seguir: Duas noites no CCB – opiniões sobre S. Carlos em Belém.
Leia também: Tristão e Isolda no CCB (crítica), Nova Temporada do Teatro de São Carlos 2017-18, Der Zwerg em S. Carlos (crítica).
Olá, mais uma vez uma grande desilusão,um espectáculo sem nível nenhum, interesse NULO.A começar pela Nadja Michael,a voz enfim, gasta, sem brilho,os agudos Horrorosos, gritados, não tem nenhum apoio vocal, grita como se estivesse num pátio qualquer, enfim uma escolha do director artístico, Errada;Insisto que a escolha do CCB é desastrosa, sabendo que a sala do São Carlos estava vazia. O resto do elenco é aceitável.Gostava de realçar o soprano Allison Oakes,com a voz mais bonita da récita, fresca e muito bem colocada e encorpada, e o Orestes de James Rutherford, com brilho e frescura e talento.O maestro não conseguiu decifrar a verdadeira essência da música de Strauss, muito pastoso e lento, precisamente nos solos da Elektra, acho que o Leo Hussain não sabia o que contar da respectiva, foi essa a grande falha do maestro.O restante elenco, aceitável.A encenadora é um falhanço total, não percebi,porque é que o Marco Alves dos Santos esteve, todo o acto em cena!!!
ResponderExcluirLi o seu comentário e penso que eu próprio era capaz de ter uma "emotividade" semelhante se tivesse sido há uns anos. Admito que hesitei entre 3 e 4 estrelas e fixei-me nas 4. Ainda bem que estou a ficar mais complacente com a mediocridade que se tem visto em S. Carlos, porque sinto também que esta complacência me faz mais feliz.
ExcluirGostave de saber aonde posso encontrar criticas de concertos tambem na Gulbenkian? Obgda
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