"Voglio fare il mio piacere..." La Bohème em S. Carlos

Não há crítica a esta produção de La Bohème porque as três récitas até à data foram canceladas por greve. Onde estão os órgãos de decisão para ouvir os grevistas? Três récitas de greve seguidas recordam os caprichos de Musetta no acto II. Será que são mesmo os artistas a Musetta desta vez?


MUSETTA
Voglio fare il mio piacere...

ALCINDORO
Parla pian!


MUSETTA
Vo' far quel che mi pare!

ALCINDORO
Parla pian, parla pian!


MUSETTA
Non secc-a-a-ar!

Elektra no CCB (crítica)

A antecipada e bem publicitada nova produção de Elektra terminou ontem no Centro Cultural de Belém. A produção revela um esforço significativo para fazer um casting ganhador. Ouvimos todos os intérpretes principais no seu repertório adequado e os currículos dos mesmos confirmam-no. Honestamente, não posso dizer o mesmo da direcção musical nem da encenação. Regressei do auditório com uma sensação de satisfação por ter visto esta ópera ao vivo pela primeira vez numa montagem respeitável que representa, para mim, o ponto alto desta temporada em S. Carlos até agora. Se isso é bom em relação a esta Elektra, não abona nada de favorável em relação aos espectáculos passados da temporada. Confesso que fui ver esta Elektra duas vezes: não só por terem sido as primeiras vezes que ouvi esta ópera de uma ponta à outra, mas também porque fiquei francamente satisfeito com o elenco. (Quantas vezes temos o privilégio de ouvir uma grande ópera de uma ponta à outra pela primeira vez?) A última récita a que assisti confirmou suspeitas preliminares positivas sobre a obra e o elenco; mas também chamou a atenção para aspectos negativos.
      A Elektra de Strauss é uma obra desconcertante, desconfortável e penetrante. Desoncertante porque é difícil compreendê-la; desconfortável porque é um drama agitado e violento. Curiosamente, é penetrante porque, apesar de ser desconcertante e desconfortável, a música gera uma envolvência que transmite grande expressividade. Por outras palavras, embora seja difícil compreender Elektra objectivamente, a música veicula uma série de emoções puras e expressivas que nos fazem aceder à parte mais íntima e primitiva das personagens. Strauss desenvolve uma rede de motivos-condutores (leit-motive) incluindo conceitos rítmicos, melodias e sons bastante primitivos que são fáceis de atingir e guiam o relacionamento do espectador com as personagens. (Exemplos óbvios incluem o ritmo do êxtase da dança e o famoso motivo obsessivo “Agamemnon”.) Apesar de não conhecer bem a música, achei-a bastante compreensível e achei a direcção musical do maestro Leo Hussain pouco entusiasmante e monocórdica. Não senti grande energia a sair do fosso de orquestra. Li num artigo de jornal que o maestro poderá ter feito de propósito para remover as qualidades de Elektra enquanto drama barulhento e violento. Acho que esse objectivo é inconsistente com a natureza expressionista da obra e resulta numa leitura empastelada, sem ânimo e que dificulta o diálogo entre espectador e personagem tão fundamental nesta ópera. Curiosamente, descobri feedback positivo do elenco quanto ao apoio do maestro Hussain mas leio agora que as minhas suspeitas são confirmadas pela crítica dos Fanáticos da Ópera. Felizmente, o elenco principal trouxe inputs valiosos (e experientes) para colmatar a falta de emotividade tão conspícua da orquestra. 
      Na última récita, a Clitemnestra de Lioba Braun foi vaiada; por mim, Hussain teria sido vaiado em vez da meio-soprano. Braun foi vaiada por estar em fim de carreira e não por apresentar uma leitura incoerente da personagem. Embora anasalada e de baixo volume, a voz de Braun é penetrante e a interpretação da personagem é convencional e de grande classe. O Orestes de James Rutherford é igualmente convencional, de voz profunda e penetrante. No final, após estar em palco durante hora e meia sem motivo aparente, ouvimos finalmente o Aegisth de Marco Alves dos Santos. Novamente, o papel confiado ao excelente cantor é curto, mas apresentado com precisão, afinação e projecção. O único aspecto menos positivo que identifico são os seus dotes como actor. Ouvir a Crisostemi cristalina e simples de Allison Oakes foi um alívio no meio da complexidade das outras personagens--sobretudo posta em contraste com a voz encorpada e volumosa de Nadja Michael. A Crisostemi de Oakes nesta Elektra foi como acompanhar um bom vinho branco fresquinho numa tarde de verão intensa. A voz ampla de Michael, como Elektra, envolve o auditório e transpõe a orquestra com uma nobreza e incisão. A presença em palco é avassaladora e até me atrevo a dizer que absorve largamente as falhas da encenação. Várias vezes, transmitiu-me uma sensação de insegurança nas notas agudas que acabou por não se consubstanciar em falha. Essa sensação não tira o mérito desta extraordinária artista enquanto uma excepcional cantora-actriz, capaz de exprimir uma vasta palete de sentimentos entre a pura angústia e o mais puro e selvagem êxtase.
      Depois da desilusão orquestral--já que o maestro Hussain não conseguiu materializar expressionismo--foi também uma pena não termos assistido à dança triunfal de Elektra, que é o vértice mais íntimo, absolutamente selvagem da ópera. Na verdade, tenho a comentar que fiquei desapontado com a encenação de Nicola Raab no geral. (Quem leu este meu texto sobre a nova temporada em S. Carlos sabe que eu tinha grandes expectativas bem fundamentadas para este trabalho da encenadora.) A minha pergunta é: o que é que Raab transmite com esta encenação e que seja visível da plateia? Quase nada: a leitura não é esteticamente convencional mas também não traz absolutamente nada de novo. Existe uma plataforma no centro do palco por onde Elektra se movimenta, representando o seu foro íntimo. Aparentemente, há um jogo com as partituras--mas não detecto nenhum simbolismo pertinente por trás. Adicionalmente, ao remover a dança final e a morte de Elektra, Raab está a desafiar Strauss e Hofmannsthal. Desafiar dois nomes históricos da arte seria compreensível se Raab tivesse de facto algo para contribuir--por mais pequeno que fosse. A justificação de que Raab seguiu Eurípedes também não é válida porque é conflituosa com a música, o libreto e o raciocínio da ópera. Na ausência de elementos actualizadores, ao remover a dança final e a morte de Elektra, Raab está simplesmente a mostrar que não compreendeu a mensagem da obra. O libreto deixa bastante explícita a mensagem da obra: “Viel lieber tot,/ als leben und nicht leben” (“Antes morrer, do que estar viva e não viver”). Ou seja, Elektra é o drama expressionista de quem vive sem uma boa razão para viver e Raab não percebeu isso.

★★★★☆ 
A seguir: Duas noites no CCB – opiniões sobre S. Carlos em Belém.
Leia também: Tristão e Isolda no CCB (crítica), Nova Temporada do Teatro de São Carlos 2017-18, Der Zwerg em S. Carlos (crítica).

L'Enfant et les Sortilèges em São Carlos (crítica)

Um dos pilares da gestão de recursos é a diferença entre “doing things right and doing the right things” (fazer as coisas bem vs. fazer as coisas certas). L’Enfant et les Sortilèges em São Carlos é o paradoxo da má alocação de recursos: utilizar os recursos certos para montar o espectáculo errado. Da produção da ópera de Ravel, o espectador pode esperar encontrar um elenco de primeiríssima água, um coro assim-assim e um espectáculo com graça. Um espectáculo com graça não é, porventura, aquilo que eu desinformadamente esperava encontrar no único teatro de ópera nacional.
      No enredo desta ópera, há uma veloz multitude de acontecimentos que dificulta a compreensão desinformada. Também paradoxalmente, em L’Enfant, embora se passem tantas coisas e tão rápido, no cômputo final parece que não se passou nada. Enquanto ópera para crianças, duvido que faça sucesso porque de certeza que as crianças achariam mais piada a outro tipo de espectáculo infantil. Enquanto ópera para adultos, duvido que desperte grandes emoções sem ser junto dos chamados “três f” – family, friends and fools (“família, amigos e parvos”).
Picasso: Garçon à la pipe.
      É uma tarefa ingrata recordar os cantores que estiveram em palco. Habitualmente, gosto de demorar algumas linhas para recordar bons momentos e apresentar alguma interpretação daquilo que vi. Neste caso, francamente não tenho grandes interpretações porque achei a obra um vazio de ideias indigno de S. Carlos. A virtude estética do espectáculo dá para arrancar umas gargalhadas – mas são maioritariamente inconstrutivas ou fáceis. Assim sendo, foi um prazer ouvir de novo Bárbara Barradas (fogo e rouxinol); a voz parece mais encorpada do que no passado e a coloratura é trabalhada, com uma infeliz ligeira tendência para a estridência na finalização dos agudos. Terei todo o prazer em ouvi-la novamente num papel mais interessante. Suspeito que Marguerite (Fausto) ou Juliette (Romeu e Julieta) seriam apostas apropriadas. Ouvir novamente Sónia Alcobaça (cadeira, coruja, etc.) também foi um prazer. O papel inicial (não sei qual era) começava com umas linhas de efeito simples mas, suponho eu, de difícil execução. Por isso, o princípio foi tremido mas, em breve, a presença em palco cresceu e foi muito agradável. Ana Franco (pastor, gata, etc.) tem uma interpretação cenicamente brilhante; em plano vocal, pareceu-me excelente para os papéis em questão, embora com uma vocalidade um bocadinho menos brilhante que a dos cantores anteriormente referidos. Não me recordo dos detalhes da interpretação de Carolina Figueiredo (mamã, chávena chinesa, etc.) nem de Carla Caramujo (princesa, morcego, etc.). As suas intervenções foram tantas e tão curtas que, embora tenha sido há um par de horas, já não recordo nenhum aspecto em particular à parte de uma impressão geral de bom nível vocal. Em linha com este último comentário, lamento não poder ser mais específico ou elogioso.
      João Pedro Cabral (bule, velhinho, etc.) teve uma interpretação muito cómica como “bule”, muito ajudado pela caracterização – mas também pela sua voz, que evoca repertório cómico. Gostaria de o ouvir novamente, diria eu, num papel de tenor rossiniano. Tiago Matos (relógio, gato), apresentou-se em bom plano vocal. Tive a impressão de estar a ouvir uma voz sólida e trabalhada. A avaliar por esta interpretação de 2013, não manteria a opinião de hoje à noite; concluo que estamos na presença de um barítono cujas capacidades estão em rápida expansão e em quem vale a pena apostar.
      Deixo para o fim uma ligeira desilusão e uma grande surpresa. A desilusão foi o barítono Ricardo Panela (cadeira, árvore). Foi a primeira vez que o ouvi ao vivo. O barítono sediado no Reino Unido recebeu críticas muito positivas a propósito de Dialogues des Carmelites, o que aguçou a minha curiosidade para o ouvir no broadcast que, na altura, foi feito pela RTP2. Segui-o também no YouTube e fiquei com uma impressão excelente. Hoje, talvez por azar da circunstância, não fiquei entusiasmado nem pelo volume da voz, nem pelo timbre. Em termos de barítonos portugueses, fiquei muito mais entusiasmado no princípio deste mês com André Baleiro em The Rape of Lucretia. (Talvez escreva umas rápidas linhas sobre o assunto em breve.) Por fim, a grande surpresa: Raquel Luís, como a criança. Não sei em que tipo de caverna é que eu tenho estado para nunca ter ouvido falar desta brilhante intérprete. Foi impressionante ver como a meio-soprano conseguiu abordar uma personagem tão simples e – na minha opinião – desinteressante, e revelá-la por uma introspectividade simples e inocente. O volume da voz é generoso e o timbre é atractivo, com alguma profundidade. Estive a analisar o seu currículo no programa de sala e não me surpreende minimamente: Hänsel e Gretel, coro em Bayreuth, Alemanha. A primeira ópera, por razões óbvias; o coro em Bayreuth e a escola alemã pelo profissionalismo e, de certa forma, porque mesmo antes de ler sobre a cantora, estava a imaginá-la em lied ou até mesmo num papel wagneriano mais leve. Parece também relevante observar que o palco estava elevado em cerca de um metro. Suspeito (desde a Traviata de 2013) de que isto potencia significativamente a projecção das vozes dos cantores.
      A encenação de James Bonas, Cydney Phillips e a luz de Rui Monteiro mantiveram a ópera viva e criaram algumas imagens com impacto visual – algumas delas sem razão aparente. Finalmente vimos a maestrina titular Joana Carneiro a desenvolver algum trabalho palpável em palco, depois da sua mediática nomeação há alguns anos. Infelizmente, a minha ignorância desta ópera ainda não me permitiu fazer uma avaliação objectiva do trabalho da maestrina titular da Orquestra Sinfónica Portuguesa.
      Fiquei com a impressão de que assisti a um desfile/casting vocal com algumas piadinhas e não a um espectáculo interessante. Recentemente, vi no YouTube um debate com o elenco da última produção dos Mestres Cantores de Nuremberga na Metropolitan Opera. A dada altura, o entrevistador pergunta a Annette Dasch qual é a ópera que a diverte mais cantar; a resposta é a que me parece mais honesta entre os restantes (magistrais) cantores, e é “Hänsel e Gretel”. Faz todo o sentido, porque é de facto uma ópera descontraída, divertida e não obriga os cantores a regressarem a casa com o fardo de um papel pesado ou intenso. Este espectáculo fez-me lembrar deste excerto do debate, ou seja, do conflito de interesses entre “divertir-se” a fazer ópera e “trabalhar” a fazer ópera. Na minha opinião, só deve haver espaço para a diversão depois de haver trabalho – e isso é impensável numa temporada tão magra e com tão pouco repertório como a de S. Carlos. Depois da Turandot, foi a segunda em três óperas desta temporada que me deixou a impressão distinta de que alguém andou a divertir-se produzindo um espectáculo bizarro, e não a produzir ópera de qualidade. No fim, o aplauso foi baço, indiferente e indiscriminado. Acho que a audiência também achou que viu o espectáculo errado com o elenco certo.

☆☆
A seguir: Elektra no CCB (crítica)
Leia tambémNova Temporada do Teatro de São Carlos: 2017-18, Turandot no Coliseu dos Recreios (crítica)

Turandot no Coliseu dos Recreios (crítica)

Se a Turandot exibida ontem no Coliseu correspondeu às minhas expectativas sobre os artistas, achei-a também um gigante falhanço logístico. Quem poderia imaginar que uma pequena “semi-encenação” resultaria na escala do Coliseu? Quem poderia no seu perfeito juízo acreditar que pôr o coro nas galerias laterais (i.e., fora do palco) poderia criar um efeito sonoro discreto? Quem poderia acreditar que desvirtuar o uso do palco em virtude de conquistar espaço à plateia não iria derrubar a quarta parede? Não me refiro à encenação – mas à organização logística. Não é possível desfrutar de uma ópera quando o coro canta pela direita, o tenor pela frente e a soprano ao fundo do palco. Este falhanço foi absolutamente gritante e, imediatamente, condição suficiente para que o espectáculo não fosse apreciável. É de facto uma pena, dado que o nível vocal pareceu bom; infelizmente, nem isso é credível dado o desequilíbrio da posição dos cantores na sala. A bom rigor, a irracionalidade da gestão logística aproximou a ópera a um espectáculo de variedades – talvez isso tenha sido do agrado dos “novos públicos” que o director artístico Patrick Dickie pretende atrair. Porém, numa nota menos irónica, aproveito para expor aquilo que os media não querem (ou não sabem) informar: “conquistar novos públicos” no Coliseu é, na verdade, um eufemismo para “poupar dinheiro em récitas”, encaixando a facturação de cinco noites pelo preço de duas. O custo foi logístico, acústico e ultimamente uma perda artística em nome de uma infantilidade organizacional.
      A semi-encenação de Annabel Arden não consegue repor a quarta parede e é essencialmente superficial nos actos I e II mas culmina com algumas actualizações relevantes no acto final. Turandot é uma ópera difícil de encenar por dois motivos: (1) tradicionalmente, requer grandiosidade e fidelidade à estética chinesa ou, (2) alternativamente, requer que a encenadora preencha as lacunas da ópera. O primeiro problema não foi posto simplesmente porque Arden segue uma estética intemporal e flexível, mas põe-se o segundo problema. A verdade é que Turandot tem uma história bizarra: aborda a escravatura, o amor, o excesso de trabalho, a irresponsabilidade familiar, a violência, o egocentrismo, a tirania e até o assédio sexual. Como por magia, a música de Puccini faz esquecer a disfuncionalidade do enredo da obra. Porém, se os românticos motivos orquestrados por Puccini não forem correspondidos pela estética da encenação, a encenadora tem o dever de explicar visualmente porque é que os heróis são uma tirana maníaca caprichosa, um irresponsável ganancioso e uma escrava sem vontade própria. Arden tenta minimizar a imagem ridiculamente complacente de Liù: é Liù que indica a Calàf a resposta ao terceiro enigma. (Mas em que medida é que viciar um concurso promove a imagem da heroína?) Com a liberação de Calàf por Liù, o trono de Turandot é abalado. Há uma cadeira no centro do palco que representa este abalo, mas não percebemos se esta é uma metáfora superficial ou uma alusão à efectiva perda de poder da tirana. Afinal de contas, a presença constante do povo tem uma voz e um pensamento, eventualmente capaz de destituir a inconsistente princesa de gelo. O coro do teatro de S. Carlos cantou em tempo e coordenação, embora eu não tenha conseguido apreciar minimamente as numerosas intervenções devido ao ensurdecedor volume na minha posição da sala. 
      A orquestra teve uma sonoridade elegante, sob direcção do maestro Domenico Longo. Embora seja uma distracção, ver a orquestra permite notar alguns detalhes musicais – sobretudo entre os violinos. Foi interessante notar como algumas melodias orientais simplicíssimas são transformadas em autênticos momentos dramáticos e perfeitamente conjugados com as vozes. No acto III, durante “Tanto amore” de Liù, os pianíssimos de Dora Rodrigues fundiram-se em perfeição com o primeiro violino, num momento comovedor. O timbre da voz de Dora Rodrigues não recorda o aveludado de uma Liù típica. Contudo, a soprano oferece um retrato intimista e convencional da personagem apesar do twist adicionado pela encenação no acto II. Alden procurou também reformular o retrato dos ministros Ping, Pang e Pong, mas acaba sendo completamente inconsequente e despropositada. Este trio, por Alden retratado como palhaços, é o verdadeiro herói da ópera: um grupo de trabalhadores dedicados, inconformados com a tirania de Turandot (“o mondo, pieno di pazzi”) e discretos subversores do sistema (“pazzo, va’ via”). Fiquei surpreendido quando os ministros abriram a sua pasta magisterial... donde tiram chávenas de chá! A banalização de Ping, Pang e Pong foi gratuita e injusta. Diogo Oliveira, Sérgio Martins e João Pedro Cabral desempenharam superiormente as partes vocais dos ministros. Após a morte de Liù, um dos ministros revela-se desapontado como quem lastima o próprio trabalho – mas as reacções dos ministros foram ambíguas e pareceram mal ensaiadas. O imperador de Carlos Guilherme foi convencionalmente estático e praticamente inaudível.
      Fernando Rojas tem claramente um grande à-vontade com o papel mas deixou-me a impressão de que cantou uma coisa mas foi obrigado a representar outra. O retrato vocal é confiante e heróico com agudos firmes e vibrantes; a encenação aponta para um Calàf diferente. Cenicamente, este é um Calàf mais humano – uma personagem que considera a possibilidade de estar a agir irresponsavelmente, como por exemplo quando assiste ao suicídio de Liù. A pujante interpretação do “Nessun dorma” valeu-lhe uma grande ovação; fiquei satisfeito por o maestro não ter interrompido a música como vi da última vez que vi uma Turandot. A Turandot de Elisabete Matos foi devidamente imponente, louca e humana. O seu “In questa reggia” mantém-se algo unidireccional e hipnótico, com algumas dificuldades no registo agudo (“quel grido”). Uma das críticas que têm sido apresentadas à sua Turandot é o seu retrato estereotipado, superficial e inconsequentemente gelado. Essa abordagem pode ser interessante de um ponto de vista teatral mas desinteressante numa escala mais intelectual. Contudo – suspeito que por sugestão da encenadora – Matos adaptou a sua interpretação do acto III. Em vez do conceito tradicional, onde a princesa se apaixona repentinamente por Calàf depois de ele a assediar sexualmente (romanticamente retratado por um beijo), esta Turandot viaja emocionalmente desde que assiste à morte de Liù. Vendo a morte da escrava, a princesa apercebe-se de como a sua tirania caprichosa afecta a vida dos outros: o beijo de Calàf deixa de ser assédio e é agora um acto mútuo de redenção. 
      A questão logística não ajudou Matos, abafando por vezes a sua voz e causando até uns momentos embaraçosos. A cena final recordou o final de Tristão e Isolda na temporada passada, com os noivos sentados lado a lado, complacentes à opinião do povo omnipresente. Teremos assistido ao fim da tirania narcisística de Turandot? Liù reaparece, recordando o preço da resistência à tirania. A encenadora conseguiu abordar ad-hoc algumas das fragilidades de Turandot, como a confrangedora fraqueza de carácter de Liù, a histeria da princesa e a confiança irresponsavelmente infantil de Calàf. Normalmente, estas fragilidades costumam ser mascaradas por produções românticas hiper-realistas – mas já percebemos que não havia dinheiro para isso. Recorreu-se antes a uma semi-encenação visivelmente low cost e sem grande força intelectual. Enfim, regressando à gritante questão logística, achei esta Turandot um desperdício redundante, comparável a misturar vinho com malaguetas. Não percebo porque não se utilizou o palco para criar um efeito sonoro mais homogéneo que privilegiasse os profissionais envolvidos no espectáculo e a audição do público. Quem organizou esta logística esteve a divertir-se e não a servir a ópera nem a audiência. Se outra pessoa brincasse tão abertamente com dinheiros públicos, seria julgada em tribunal. Mas como os brincalhões são artistas, a música é diferente. 

★★☆☆☆
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