La Traviata | Teatro Nacional de São Carlos (crítica), Trilogia de Verdi II

"Sempre libera!"

A música inconfundível de La Traviata ocupa um dos lugares mais acarinhados do repertório lírico e é uma das mais representadas. Porém, é uma peça exigente, que requer intérpretes e encenação arrojados para fazer uma Violetta provocadora e atractiva, um Alfredo comovente e um “papá Germont” implacável, de modo a corresponder ao nível da música. Nesta Traviata, protagonizada por Daniela Schillaci, encontra-se uma Violeta apaixonada, com uma belíssima voz, figura elegante e alguns malabarismos vocais bonitos. A ária “Sempre libera” foi interpretada nesses termos, mas deixou a nota aguda final para outra ocasião. No inconfundível “brindisi” do acto I, enquanto Alfredo propõe o brinde, Violeta dança provocadoramente com o barão—esse último de postura tradicional e severa—quase convidando Alfredo a aproximar-se. Este regressa ao palco no final do acto para reivindicar o amor de Violeta. 

As investidas de Germont, por seu lado, vieram de Damián del Castillo, um barítono sem brilho vocal, que calmamente, de perna cruzada, bem acomodado numa cadeira de jardim, não demonstra qualquer compaixão pela “traviata”; de uma forma tal, que é maior a indiferença do que qualquer outra sensação. Pessoalmente, o P.Z. encontrou uma cena completamente desinteressante no momento da ópera que mais o costuma comover, apesar de Schillaci ter transmitido a angústia de Violetta, condenada a morrer sozinha. Quando inicialmente vê a cortesã, Germont apenas sente desinteresse (desprezo, poderia discutir-se?). Violetta aceita deixar Alfredo dada a argumentação do papá Germont, que apenas sente compaixão pela “traviata” quando ela chora—“chora? Chora, a infeliz?”, observa ele. Mas como poderá Germont ter passado esse momento imóvel, sentado no outro lado do palco?

Na Traviata, apesar da presença frequente de coros diversos, observa-se a verdadeira solidão da cortesã parisiense: todos os seus faustosos companheiros—até a vida—a abandonam. De forma irónica e inteligente, Francesco Esposito garante a presença de figurantes no palco, no que parecem camarotes de teatro; e no fundo a vida de Violeta Valéry era apenas um teatro de luxo. No fim do acto II, esses camarotes (feitos de módulos que servirão de cenário à trilogia Trovador-Traviata-Rigoletto) acabam por se tornar estáticos e perdem completamente o interesse, até à cena final em que nem camarotes a Traviata tem, culminando num final vazio mas com um efeito visual potente. É de notar a ausência da progressividade da doença nesta encenação, o que é uma falha grave.

O Alfredo de Andrés Veramendi foi inconsistente: não tem registo grave decente, mas não perde a oportunidade para se exibir nas notas agudas. A partir do acto II, manteve um Alfredo com uma postura infantil exacerbada pelo exibicionismo do registo agudo. Em “Parigi, o cara”, a sua mezza-voce também não mereceu palmas. Após a arruinada ária “Di Provenza” do papá Germont (que supostamente dá a entender que Germont não é cruel como quando recusa o abraço que Violeta lhe pede no acto II), o pano desce de forma pindérica. Quando sobe, apresenta a casa de Flora, com uma mesa de jogo de grandes dimensões—onde Alfredo e o Barão decidem bater-se em duelo. Na cena final, Schillaci foi muito comovente no “Addio bel passato”, cantado debaixo de um vasto dossel. Se no Trovador restavam dúvidas quanto ao maestro Martin André, no finale, desde o dueto, a orquestra não produziu som comovente, mas fez antes uma leitura imprecisa da partitura de Verdi. A Violetta foi uma escolha bem equilibrada, mas esta Traviata deixa vários números de sensação acabar em silêncio da audiência.

★★★☆☆, protagonizado por intérprete superior.

8 comentários:

  1. Caro PZ,
    Gostei muito de ler a sua apreciação. Também lá estive e discordo de alguns pontos mas num estamos em consonância - a encenação, na globalidade, foi muito melhor que a do Trovador. Já a interpretação musical...
    Só mais tarde terei tempo de escrever algo, mas aparecerá.
    Cumprimentos amigos

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    1. Viva!
      Não me exprimi bem: reformulando, achei que a encenação tinha pontos fortes e fracos, tendo sido o acto I muito interessante, a cena I do acto II foi nojenta e o final também teve um efeito curioso. Em suma, foi moderadamente duvidosa.
      A encenação do Trovador, para mim, foi uma reformulação original e bastante estimulante. Não era perfeita em alguns pormenores mas não deixou de ser bem apreciável.
      Cumprimentos e... espero o seu texto!

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  2. Apesar de achar que a "Violeta" tinha um timbre bonito e uma boa coloratura, não acho a voz (neste caso o timbre) desta cantora a ideal para este papel, e não gostei da sua presença de palco.
    Desastroso para mim foi o "Alfredo": um trimbre desagradável, um vibrato pavoroso, e uma das piores musicalidades que já ouvi num palco (só piores são os professores de canto da Escola Superior de Música, que de professores de canto não têm absolutamente nada).
    De resto concordo...

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  3. Concordo: a 1ª cena do 2º acto foi, no mínimo, nojenta; o mesmo se pode dizer da ideia da pistola...
    N'O Trovador", achei toda a cenografia e encenação de fugir, do princípio ao fim. Um epidódio medieval com espingardas? É de patear ferozmente!!!

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    1. "...patear ferozmente!!!" Bravo, que bela linguagem! Imagino que faça o mesmo quando vai ao hospital ou quando não gosta dos preços no supermercado. Ainda assim já que tem patas que lhes dê bom uso!

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    2. "Patear" é um termo que se usa desde o século XIX (pelo menos...)no jargão dos teatros de ópera, significando uma forma possível de demonstração de desagrado do público nesses mesmos teatros e mada tem a ver com hospitais ou supermercados. Sugiro que, em vez de insultar, leia Eça de Queiróz ou Júlio Dinis.
      Já agora acrescento que o que se fez na encenação deste "Trovador" ultrapassou a transposição para a actualidade: desrespeitou o próprio Verdi - basta recordar a forma como se apresentou o coro dos ferreiros e reler as indicações dadas por Verdi a esse respeito.

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  4. ...nem uma palavra acerca dos cantores portugueses, devo presumir que estiveram todos muito bem, caso contrário já seriam certamente alvo das criticas!!

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