Cena do acto II.
Parsifal:
“zum Raum wird hier die Zeit”
Quando
Richard Wagner fez Parsifal subir à
cena na Festspielhaus de Bayreuth
pela primeira vez, a última coisa que se esperava do mestre era a obra
fervorosamente católica e profundamente tocante que actualmente ocupa um dos
lugares mais proeminentes do repertório operático. O extraordinário paradigma
musical que Wagner desenvolveu encontra, em Parsifal,
uma dimensão artística intemporal e intensa, em que “o tempo se transforma em
espaço” nos trilhos de Montsalvat, a floresta onde a ordem de cavaleiros de
Titurel protege o Santo Graal. François Girard encontrou no drama de Parsifal a dimensão intemporal da obra,
expressando-a numa encenação inteligente e provocadora. A lenda do cavaleiro
do Graal é reinterpretada, levando à reformulação de todo o apaixonado ideal
cristão de Parsifal.
Esse
ideal é frequentemente associado a fanatismo religioso, o que é um erro, quando
analisado à luz do sistema e do raciocínio em que Wagner opera os seus “dramas
musicais”. Parsifal é, na verdade, um
diálogo figurativo sobre a moral. “Quem é bom?”, pergunta Parsifal, na sua
inconsciência; a resposta que Gurnemanz, cavaleiro do Graal, lhe dá é “tua mãe,
que abandonaste”. Klingsor é o estereótipo do anti-herói, que convictamente renega
a virtude e, pela disrupção dos cavaleiros de Montsalvat, tenta apoderar-se do
Graal. Evgeny Nikitin—escandaloso intérprete wagneriano—representou Klingsor,
no seu antro de conspiração, com tom feroz e expressão apaixonada—mas pelo mal.
Girard recria o castelo de Klingsor, no acto II, de uma forma provocadora e
sinistra. Kundry (Katarina Dalayman) é como todas as outras ninfas: uma ilusão criada
por Klingsor, coberta de sangue. Essas circunstâncias reformularam o diálogo
com Parsifal como uma cena fria, direccionando o drama para a questão moral (“quem
é bom?”) em vez de focar o passado de Kundry, remontando a quando esta se riu
do “Salvador” na cruz, razão pela qual vive amaldiçoada.
Parsifal
não é inteligente, mas sente; ao recordar a ferida de Amfortas, sente que o que
está a fazer está errado, o que define a fé. Jonas Kaufmann foi um notável
Parsifal. Embora seja um bocado vaidoso ao projectar a voz (tentativa de provar
ser o heldentenor que muitos não
acreditam que seja?), apresentou um Parsifal de emoções, com algumas cenas
introspectivas muito cativantes e emocionais, como em “Amfortas! Die Wunde!”. A fé de Parsifal e um gesto suspendem a
magia de Klingsor, que não passa de uma ilusão: mas Kaufmann não fez nenhum
gesto identificável como cristão. Parte da abordagem inteligente de
Girard foi, assumindo Cristo como uma metáfora, desprender a encenação dos
tradicionais gestos cristãos, recorrendo, por toda a ópera, a vários símbolos
de religiões diversas. No prelúdio ao acto I, pela primeira vez, ouve-se o peremptório
glaubensmotiv (tema da fé), ao som do
qual um conjunto de pessoas se levanta e tira os casacos, introduzindo a
perspectiva desta encenação; no fundo, a fé é uma razão para a união humana, e
é na diversidade de costumes e religiões que a humanidade existe.
Amfortas,
o líder dos cavaleiros do Graal, foi interpretado por Peter Mattei, barítono de
poderosa voz, que expressivamente transmitiu a angústia que tinha ao proteger o Santo
Graal mesmo sem o merecer. René Pape foi Gurnemanz. A sua voz cheia e elegante
permitiu uma narração empolgante no acto I e, no acto final, apresentou um
cavaleiro constante, embora cansado pela aflição de Montsalvat. No acto III, o
cenário é semelhante ao do primeiro acto, numa espécie de monte desolado, em que as
projecções de fundo apresentam elementos estranhos e fantasiosos, sugerindo, mais do que intemporalidade, a ausência de um espaço fixo ou familiar: “onde o tempo se
transforma em espaço”, diz Gurnemanz no texto. A direcção musical de Daniele Gatti foi envolvente e intensa, contribuindo muito positivamente para a construção do drama wagneriano.
Tal
como em Amfortas, em todos os humanos há alguma ferida que apenas pode ser
curada pelo toque redentor da mesma lança que desferiu o golpe; toda a gente
acredita em algo só porque sim, como Parsifal descobriu a fé e se tornou o
eleito do Graal; cada um sabe o que considera bom ou mau; são as ideias (fé) que unem pessoas; todos temos o nosso
Montsalvat—seja ele o que for! Foram essas as ideias que a Metropolitan Opera
transmitiu ontem Live in HD, na experiência transcendental que proporciona o Parsifal.
★★★★★ (5/5)
★★★★★ (5/5)
Assistir ao Parsifal é sempre uma experiência que não nos deixa indiferentes. Foi mais uma vez o que se passou. Para mim, a amplificação vocal destas transmissões continua a introduzir o principal factor de perturbação porque minimiza um dos pontos altos da ópera - o canto. A produção de ontem tem muitos aspectos interessantes mas não gostei do 2º acto, que também deverá ter proporcionado aos cantores uma experiência desagradável.
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