"Mais uma" Carmen em São Carlos (crítica)
A Carmen de Bizet é uma ópera simples, directa e com mais recitativos do que um melómano desejaria. Está tão enraizada no repertório usual, que por vezes a audiência contrabalança a sua simplicidade com a sua usualidade, encontrando nela um trabalho sensaborão. Embora sinta também algo dessa conclusão, o P.Z. não resiste à simplicidade das maravilhosas melodias compostas pelo mestre francês: desde o prelúdio até aos duetos com o Don José, a “Habanera”, o “Toréador” e as árias da flor e da Micaëla, a “Seguidilla”, o coro dos contrabandistas e a cena das cartas; até ao dramático dueto final que prende a audiência: sera-t-il temps encore? Desde o primeiro encontro entre Carmen e Don José, todo o romance parece uma fatalidade adiada pela sexualidade fortuita. Será que alguém acredita mesmo que a boémia Carmen está a tempo de mudar a sua vida pelo pacato Don José?
Curiosamente, a encenação de Calixto Bieito sugere que é a própria Carmen que deseja ter essa oportunidade. Bieito estimula o conceito da vida cigana, apresentando uma sociedade de prostituição que coexiste com um regimento promíscuo estereotipadamente adaptado à realidade. Partindo de uma história algo sensaborona sobre os soldados que vão ver as trabalhadoras fabris a sair da fábrica, Bieito disseca a psicologia subjacente à versão datada da história, evidenciando uma cultura significativamente mais crua e visceral, onde o oficial do regimento é uma personagem cínica em detrimento do tradicional “Belcore” e a Carmen é vítima das suas cicunstâncias sociais e económicas.
Justina Gringyte interpreta uma Carmen sensual física e vocalmente, munida de um meio-soprano potente e penetrante. O seu fraseado é cuidadosamente detalhado, proporcionando uma Carmen envolvente e arrepiante. Vem sem dúvida substituir--ajudada pela encenação--a tradicional sedutora por uma personagem mais empática em busca de redenção. Quando Micaëla suplica a Don José que ponha a vida boémia para trás, Carmen estremece num misto de inveja em vez de ver o seu caminho aberto em direcção a Escamilo. Será o seu brutal fim o seu encontro com a redenção? Certamente não para Don José--o redentor não redimido. O Don José de Lukhanyo Moyake não esteve a par da elevada fasquia posta por Gringyte: a voz é banal e não tem o tom dramático requerido para a personagem que, nesta versão, é claramente o desertor que Escamilo nele aponta e não apenas a pobre vítima da leitura original. Mesmo com essa base, a sua interpretação tem falta de nuances e acaba caindo na banalidade.
O Escamilo de Nicholas Brownlee é decente, afinado e trabalhado dentro dos limites vocais do artista. Sarah-Jane Brandon interpretou a Micaëla, com uma voz pequenina e arranhada e, ocasionalmente, uns pianíssimos muito bonitos. O caso da Micaëla destaca-se por via da encenação; mais uma vez, Bieito aprofunda a psicologia da história e tansforma a tímida--e algo insípida--pequena numa arrojada jovem que inventa um pretexto para beijar o seu Don José amado de longa data e, aparentemente, também inventa que a mãe esteja a morrer para arrancar o desertor do controlo de Carmen. Quando este anui em deixar o acampamento, Micaëla cospe sobre Carmen, que por cinismo da “pequena” não conseguiu agarrar o seu caminho de redenção. Escamilo aparenta ser um novo caminho (“j'ai jamais aimé quelqu'un autant que toi”); mas ele próprio diz que está interessado num amor dos que “durent pas longtemps”.
A nova Carmen de S. Carlos aprofunda aquilo que é talvez o mais sensaborão dos standards da ópera: e por isso merece mérito. Porém, ficam por explicar uma excessiva alusão à simbologia espanhola e o recurso a vários elementos não relacionados com a acção. (Ainda não será desta que vamos ver uma Carmen sem bandarilhas?) A imagem final do acto I é violenta e algo despropositada, dado que inclui a bandeira espanhola. Embora esta Carmen tenha um conceito próprio e seja globalmente coerente, vários aspectos aleatórios vão povoando o espectáculo. Certas opções com o coro e as luzes são excessivamente intrusivas e barulhentas. Nesse sentido, a encenação trabalha por vezes contra si própria, da mesma forma que a assimetria do nível do elenco também acabou por evidenciar que esta Carmen foi só mais uma entre muitas.
★★★☆☆
Obs: este NÃO é um espectáculo para levar as crianças.
Carmen São Carlos crítica
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