¿Que seria a Traviata se as vozes de Violeta e Alfredo fossem narração apenas; que seria a ópera sem o canto? O que seria A Valquíria sem orquestra; que seria a ópera sem as cordas, os sopros e a percussão? Seria ópera? E o que é a ópera sem cenários? Felizmente, as primeiras perguntas não se interpõem na prática, mas resposta à última questão requer reflexão cuidadosa. Em casa, de vez em quando, o P.Z. gosta de ouvir gravações, por vezes explorando cuidadosamente música e libreto. Na música, se a interpretação o sugerir, pode encontrar-se movimento e cores (além de emoção); no texto encontram-se referências a lugares, objectos e ideias. Apreciadores de ópera de todo o mundo conhecem esta prática e a do DVD; por vezes, sabem óperas inteiras de cor sem as terem visto ao vivo.
Pensando assim, estas práticas caseiras não transformam a ópera em algo menos artístico do que se vê no teatro, mas existem apenas por conveniência: não é conveniente ter um teatro em casa e raramente há tempo para ouvir a gravação de uma ópera com atenção. A ópera é uma arte com dignidade (leia-se, honra) própria. Diz o Falstaff: “por vezes é preciso desviar a honra/ recorrendo a estratagemas” como o CD, o DVD e o YouTube, por vezes “desviando” ainda mais a ópera para música de fundo durante a actividade diária de ler o jornal ou ouvir ópera enquanto se faz outra coisa qualquer. Estes delitos frequentemente culminam no grande crime: deixar o CD em pausa para ver rapidamente uma notícia na televisão ou telefonar a alguém. Todos os leitores fazem algum destes vilipêndios à ópera de vez em quando.
O momento da redenção dos aficionados é a noite da ópera ao vivo no teatro. Entusiastas como o P.Z. pensam em ópera 365 dias por ano: é natural, para começar, que mesmo 20 oportunidades sejam insuficientes para suprir a necessidade de redenção que se desenvolve nos restantes 345 dias com uma ária aqui, um Live in HD ali, e invariavelmente o Tristão a ser deixado ao assassínio como música de fundo. A questão da quantidade de espectáculos que é possível produzir numa temporada em Lisboa tem sido muito discutida e, curiosamente, há um novo corolário—a semi-temporada em versão de concerto, que tem passado despercebida pela blogosfera. O verdadeiro propósito deste texto é, na verdade, explorar de forma passiva esse segundo assunto, em lugar de o analisar do ponto de vista crítico: “porque é que uma versão de concerto não satisfaz o P.Z.?”, em vez de “porque é que esta temporada é insuficiente?”.
Respondendo ao primeiro parágrafo, o P.Z. concluiu que a ópera sem encenação continua a ser ópera. A música e o argumento veiculam uma miríade de dados que podem ser interpretados pelo espectador e construir virtualmente a extensão maior da arte operática. Efectivamente, a maioria dos entusiastas comprova este argumento no seu dia-a-dia, frequentemente retirando um bocado da dignidade a esta arte superior—o que é compreensível e desculpável por conveniência. Contudo, estes actos de conveniência são incompletos e criam a necessidade de óperas ao vivo, em toda a sua extensão—ou seja, com encenação.
Três factores estão em jogo: a obra, a interpretação e a reflexão. A obra está sempre presente, registada na partitura e no libreto; a interpretação transforma a obra em algo palpável, por via da orquestra, dos cantores e da parte visual: a encenação. A obra só poderá ser objecto de reflexão por via profissional (ler a partitura) ou através da interpretação. Sem encenação, a interpretação fica incompleta e apenas se diferencia da audição de um CD devido à qualidade de som. Comenta o leitor, “então poderia substituir-se a orquestra por uma gravação desde que houvesse encenação”. Não, porque o espectáculo não seria coerente. E qual é a diferença entre ver uma ópera ao vivo e um DVD? É a liberdade que o espectador tem de prestar atenção ao que preferir, o prazer de assistir a um momento que não se vai repetir e poder dedicar completamente algum do seu tempo a reflectir sobre uma arte fascinante. Logo, tal como a ópera em DVD ou Live in HD, uma versão de concerto provoca a inexistência de uma “4ª parede”, desse modo desligando a ópera.
Os leitores sabem que o P.Z. é admirador de Elisabete Matos e ficou muito contente por saber que teria a oportunidade de a ver na Gioconda neste mês, em S. Carlos. Mas não sabia que era em versão de concerto e não tinha conhecimento daquele nome que está no elenco e o P.Z. pasma ao saber que—apesar de se dizer que há quem adore—alguém deixa pisar um palco. Mesmo sendo Elisabete Matos, não será exactamente a Gioconda; é uma versão de concerto da Gioconda. Durante estes meses de (quase) inactividade no blog, o P.Z. só ouviu ópera no YouTube com dois consolos em Zurique no fim de semana passado. Para o P.Z., não vale a pena ir ao Chiado para ter mais ópera amputada.
Também sou um estragador de ópera criminoso! S/N
Texto brilhante!
ResponderExcluirParabéns